Blog em homenagem à novela de Walther Negrão, exibida entre 1996/1997, às 18h, pela TV Globo

Livremente bregas


O nome da novela - Anjo de mim - já é um tanto incômodo em seu tatibitate poético. Mas nada está perdido. Antes de qualquer preocupação possível, é sempre bom lembrar uma importância histórica que a novela já tem. Retira a atriz Helena Ranaldi daquele balcão de notícias e reportagens do Fantástico, devolvendo-a, com o inevitável esplendor, ao mundo do drama. Isso é tão importante que tudo mais ainda é precário.

Primeiro capítulo de novela é sempre um acontecimento incômodo, tal o esforço de produção que se mostra evidente. Nada menos do que duas festas simultâneas. Uma delas com multidão de figurantes se esforçando na alegria de alemães que bebem cerveja pelas ruas de Petrópolis e seu sempre fotogênico Palácio de Cristal. E outra, para os mais ricos, recuperando a amplidão de um muito iluminado hotel Quitandinha.

Tudo isso e muitas sugestões do que será a trama. Tony Ramos, um herói inevitável em sua nítida carga de simpatia, é um escultor que esculpe com certa sofreguidão um gárgula em que o grotesco é muito mais tropical do que gótico. Tony Ramos é tão exacerbado em sua arte que namora a própria marchand (Tássia Camargo). Tássia Camargo marchand? Nem ao menos de primitivos, naif ou ínsitos? Oh, as concessões que uma novela exige de um pobre telespectador.

Mas é preciso isolar a presença do ator José Wilker no capítulo. Ele é casado e tem uma amante. Até aí morreu Neves. É também rico, poderoso e ardiloso. Até aí morreu Gomes. Mas ainda é sofisticado, elegante e cínico. Até aí morreu o Jeremy Irons. Mas se ele é tudo isso, por que se esconde no mato para namorar a Cláudia Alencar, uma atriz quase característica em sua insistência de cometer adultério na areia ou no capim da paisagem de suas novelas? José Wilker, com toda as citadas qualidades de revista Town & Country, está muito mais preocupado do que amoroso. Descobriu que, muito rico, vem sendo roubado em seus negócios.

Um fato mais do que merecido. Casado com a belíssima Helena Ranaldi, ele, um suposto rico, fino e chique, vai namorar a Cláudia Alencar no mato, exatamente quando ela inventou uma cor para o seu batom que dá a impressão de ter seus lábios cobertos por um band-aid naquele tom que se convencionou chamar de "cor de carne". José Wilker está pedindo um castigo.

Terá. Aparece, seríssimo, sem mover um músculo de sua poderosa cara, o ator Herson Capri. Nada diz e tudo comunica o ator Capri de decisão tomada. Com seu carro engarrafado entre animados festeiros, ele segue, muitíssimo cool, até seu destino implacável. Desvia-se até do núcleo cativante em que colocaram o ator Cláudio Corrêa e Castro de cueca samba-canção em plena sala de sua casa. Está tudo preparado para que seja festejado o aniversário 70 que ele completa. Cláudio Corrêa e Castro só está fazendo 70 anos? Mas não foi com essa idade que ele pisou, pela primeira vez, o palco como amador do Tablado? Mas teremos, certamente, muito Cláudio Corrêa e Castro para aliviar as futuras e numerosas tensões dramáticas da novela, promovido que ele foi ao papel de vovôzinho muito querido de todos nós.

Como é bem educado o escultor Tony Ramos. "Posso falar uma breguice?", pergunta ele. Só ele. Os outros, inclusive sua namorada marchand, são livremente bregas. Mas é que o Tony Ramos traz com ele o elemento voodoo tão indispensável ao bom fluir de suas novelas. Num sonho persistente, ele se vê em combate, como um soldado de peruca branca, cercado de negros descamisados. O problema é que sempre acorda desse sonho com uma dor no braço que sua arte tanto exige. "Você precisa de um psiquiatra", diz a amante, decidida a submetê-lo a terapias de vidas passadas. Vai começar a seànce? Não sejamos apressados. É apenas o primeiro capítulo.

Passemos ao lado muito agradável. Helena Ranaldi desce uma escada com um longo vestido preto. Na novela, ninguém aplaude. Mas, na casa de cada um, é aquela festa. Helena Ranaldi e seu longo vestido preto não perde nem para a Ingrid Bergman daquele filme carioca do Hitchcock. Com que naturalidade ela se veste para a noite. Ingrid Bergman ainda tinha a ajuda do Cary Grant. Helena Ranaldi, bravíssima, vai mesmo de Otávio Augusto. Mal se pode esperar o momento em que ela soltará os cabelos e se movimentará como a única atriz das novelas brasileiras que tem pernas.

Enquanto isso, no núcleo jovial jovem, a Paloma Duarte ganha um anel do Eduardo Moscovis, numa cena particular de noivado. E o Márcio Garcia o que faz? Está apenas indo de ponto a ponto. Já a Viviane Pasmanter, em trapos, é perseguida por um estuprador, no escuro jardim do palácio imperial. E a festa dos cervejeiros; ali ao lado? Já acabou? No hotel Quitandinha, não. Os casais dançam ao som de uma orquestra que toca, sem muita inspiração, músicas no estilo cheek-to-cheek. Enquanto dançam, o Tony Ramos está encontrando o Gracindo Jr. em um sonho. Dessa vez é pesadelo mesmo. Coisa de vidas passadas.

Finalmente, o encontro, José Wilker, que atende pelo nome de Bianor, recebe Herson Capri em sua casa. José Wilker fala sem parar. Herson Capri, aqui chamado Marco, coloca força silenciosa em sua expressão facial. Os dois são amigos quase irmãos. "E se o ladrão fosse meu melhor amigo? E a mulher e os filhos dele, o que iriam pensar de mim?". O José Wilker está falando demais. O Herson Capri age. Aponta um revólver para o Bianor e dispara. Já estamos livres do José Wilker. Depositamos, então, a maior confiança nas outras soluções que o autor, Walther Negrão, encontrará para os outros personagens que se mostrarem irritantes. Dizem que o começo é sempre difícil. É. Mas acabou. E sobra ainda a certeza de que o diretor Ricardo Waddington será profissional e, muito generoso, colocará a estrela Helena Ranaldi em todas as cenas que a novela terá por todos esses capítulos que ainda virão.



Fonte: jornal O Globo
Data de publicação: 11 de setembro de 1996
Autor: Telmo Martino

Nenhum comentário:

Postar um comentário